domingo, 3 de abril de 2011

Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade

Publicado em 1927, Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, chama a atenção por inúmeros aspectos. O primeiro é a sua linguagem, provavelmente considerada “errada” na época, pois se afasta do português castiço ao imitar (às vezes de forma eficiente, às vezes não) o padrão coloquial brasileiro. É como se o texto escrito imitasse a maneira de falar do nosso povo. É um livro para se fazer de conta que se está ouvindo e, não, lendo.

Há numerosas características em Amar, Verbo Intransitivo que o enquadram como modernista. Um romance modernista da primeira frase (1922 – 1930), impregnado de um espírito de destruição até ao exagero. O espírito da “Semana de Arte Moderna”: destruir para construir tudo de novo. A mola real de toda a obra do autor é a pesquisa, a busca.

O romance apresenta no próprio título uma contradição gritante, afinal, o verbo "amar" é transitivo direto e não intransitivo. Se isto já não bastasse, ainda recebe uma curiosa classificação: é apresentado na capa como Idílio. A perplexidade é inevitável, uma vez que idílio implica numa forma singela de amor em que não pairam dúvidas quanto à reciprocidade entre dois sujeitos.

Outro aspecto interessante é o constante emprego das digressões, boa parte delas metalingüísticas, outra parte sociológicas, que fazem lembrar o estilo machadiano. Mais uma vez, a obra apresenta elementos formais que a colocam à frente de seu tempo, caracterizando-a, portanto, como moderna.

Dentro do aspecto sociológico, há que se entender uma posição meio ambígua de Mário de Andrade, como se ele mostrasse uma “paixão crítica” por seu povo, principalmente o paulistano. Note-se que critica valores brasileiros, ao mesmo tempo que diz que é a nossa forma de comportamento, deixando subentendido um certo ar de “não tem jeito”, “somos assim mesmo”. Além disso, ao mesmo tempo em que elogia o estrangeiro, principalmente a força dos alemães, desmerece-os ao mostrá-los como extremamente metódicos, ineptos para o calor latino. Sem mencionar que reconhece que o imigrante está sendo como que simpaticamente absorvido por nossa cultura.

Mas o que mais chama a atenção é a utilização da teoria freudiana (grande paixão do autor) como embasamento da trama.

O inusitado da profissão de Fräulein pode parecer inverossímil numa visão separada da totalidade sócio-econômica e histórica (como também seu sonho de retornar à Alemanha, “depois de feito a América, e o casamento, o vago amado distante à espera de proteção, espécie de redenção wagneriana pelo amor.” Professora de amor, profissão que uma “fraqueza” lhe permitiu exercer, no entanto “é uma profissão”, insistiria Fräulein.

Na Europa, o período denominado entre-guerras caracterizou-se por uma profunda crise econômica, social e moral que atingiu os países capitalistas na década de 20. Na Alemanha, particularmente, a situação era pior: havia um clima propício, como nos demais países que perderam a guerra, ao nascimento de um violento nacionalismo. No caso, sabemos, estava aberta a brecha para a ascensão do nazismo. No Brasil, apesar da guerra, o clima era bem outro: havia um relativo otimismo em relação ao futuro. Superávamos o atraso de um país agrário num estado mesmo de euforia pelo dinheiro proveniente da plantação e comércio do café e vislumbrava-se a possibilidade de unir esta riqueza à nova riqueza industrial. Fräulein, diante de realidades tão opostas, se adapta. Aliás, seu poder de adaptação é insistentemente enfatizado pelo narrador:tornaram a vida insuportável na Alemanha. Mesmo antes de 14 a existência arrastava difícil lá, Fräulein se adaptou. Veio pro Brasil, Rio de Janeiro. Depois Curitiba onde não teve o que fazer. Rio de Janeiro. São Paulo. Agora tinha que viver com os Souza Costas. Se adaptou.

A descoberta de Dona Laura sobre o acordo estabelecido entre Fräulein e o Senhor Souza Costa, referente à iniciação amorosa/sexual de Carlos, provocou explicações desconcertantes, exibindo a hipocrisia social vigente na metrópole paulista: Laura, Fräulein tem o meu consentimento. Você sabe: hoje esses mocinhos... é tão perigoso! Podem cair nas mãos de alguma exploradora! A cidade... é uma invasão de aventureiras agora! Como nunca teve!. Como nunca teve, Laura... Depois isso de principiar... é tão perigoso! Você compreende: uma pessoa especial evita muitas coisas. E viciadas! Não é só bebida não! Hoje não tem mulher-da-vida que não seja eterônoma, usam morfina... E os moços imitam! Depois as doenças!… Você vive em sua casa, não sabe… é um horror! Em pouco tempo Carlos estava sifilítico e outras coisas horríveis, um perdido!

Há de se convir que havia um vasto mercado para a professora de amor, que se fez assim, inclusive, por captar as necessidades e capacidade desse mercado. Ora, antes de vir para a emergente São Paulo, ela esteve no Rio de Janeiro e em Curitiba, “onde não teve o que fazer”.

Foco narrativo
A narrativa é feita na terceira pessoa, por um narrador que não faz parte do romance.

Linguagem e Estrutura
A narrativa corre sem divisões de capítulos. Mário de Andrade usa as formas conhecidas de discurso. É mais freqüente o discurso direto, nos diálogos, mas em algumas vezes, usa também o discurso indireto e o discurso indireto livre.
Apesar de certos alongamentos em seus comentários marginais, o autor escreve com rapidez, dinamicamente, em frases e palavras com jeito cinematográfico. Mário de Andrade usa uma linguagem sincopada, cheia de elipses que obrigam o leitor a ligar e completar os pensamentos. Em vez de dizer e de explicar tudo, apenas sugere em frases curtas, mínimas.

Personagens
As personagens do livro são, em geral, fabricadas, artificiais, sem muita vida ou substância humana.
Os personagens de Amar, Verbo Intransitivo são bem parecidos, e socialmente domesticados. Para ver, praticamente, todos os personagens em ação, com certa espontaneidade, o melhor momento é a volta de trem, depois daquela viagem ao Rio de Janeiro. Um dos momentos narrativos mais interessantes em todo o romance. Mas a ação principal está em Fräulein: seu domínio sexual, com imperturbável serenidade bem alemã, contrasta com a espontaneidade sexual, com a impetuosidade bem brasileira do excelente aluno (em sexo), Carlos.

O narrador gosta de ver os seus personagens. É um espectador pirandeliano que acompanha suas criaturas. Que mentira, meu Deus!! Dizerem Fräulein, personagem inventado por mim e por mim construído! Não constrói coisa nenhuma. Um dia Elza me apareceu, era uma quarta-feira, sem que eu a procurasse.... E continua a sua pequena teoria o personagem. São os personagens que escolhem os seus autores e não estes que constroem as suas heroínas. Virgulam-nas apenas, pra que os homens possam ter delas conhecimento suficiente....

Enredo
Souza Costa, homem burguês, bem posto na vida, contrata uma governanta alemã, de 35 anos, para a educação do filho, principalmente para a sua educação sexual.
Não me agradaria ser tomada por aventureira, sou séria, e tenho 35 anos, senhor. Certamente não irei se sua esposa não souber o que vou fazer lá.
Elza é o nome da moça. Mas vai ficar conhecida e será chamada sempre pela palavra alemã Fräulein. Chegou à mansão de Souza Costa, numa terça-feira. (Ganharia algum dinheiro... Voltaria para a Alemanha... Se casaria com um moço “comprido, magro”, muito alvo, quase transparente”...).
A família era formada pelo pai, por D. Laura, o rapazinho Carlos e as meninas: Maria Luísa, com 12 anos; Laurita com 7 e Aldinha com 5. Havia também na casa um criado japonês: Tanaka. A criançada toda começou logo aprendendo alemão e chamando a governanta de Fräulein. Carlos não está muito para o estudo. Fräulein logo se ajeitou na família, uma família “imóvel mas feliz”. Mas o papel principal da governanta é ensinar o “amor”.

Notas
1. O problema central do romance é a educação sexual de um rapaz de família burguesa, em São Paulo. As meninas ficam relegadas a um segundo plano. Carlos é mais importante. Não pode ficar sujeito à ganância e às doenças das mulheres da vida. Como resolver o problema? Contrata-se Fräulein, professora de sexo. É mais uma estrangeira que entra para a casa brasileira, onde o copeiro é italiano fascista, a arrumadeira é belga ou s uíça, o encerador é polaco ou russo. Na casa de Souza Costa o empregado é japonês e a governanta é alemã. Só as cozinheiras que ainda são mulatas ou cafusas.

2. Há uma referência ao racismo alemão: quedê raça mais forte? Nenhuma... O nobre destino do homem é se conservar sadio e procurar esposa prodigiosamente sadia. De raça superior, como ela, Fräulein. Os negros são de raça inferior. Os índios também. Os portugueses também. São as idéias de Fräulein, principalmente depois que leu um trabalho de Reimer, onde se afirmava a inferioridade da raça latina.

3. A família burguesa é patriarcalista: o centro de tudo é o homem, o pai e o filho, Carlos. Todos têm que obedecer ao pater-familias. A começar de D. Laura que se submete, se adapta, aceita as idéias do marido, se conforma com a presença da Fräulein como professora de sexo do filho. E a família vai continuar patriarcalista porque já estão centralizando todas as atenções no filho varão.

4. Nessa família existe também uma religião, certamente velha tradição dos ancestrais. Uma religião de domingo e de tempos de doença. Para que a filha, Maria Luísa, sare, Sousa Costa aceita fazer todos os sacrifícios. Deixará até algumas aventuras fora de casa. Ora deixemos de imoralidades! Sousa Costa nunca teve aventuras, nunca mais terá aventuras, todos os sacrifícios, porém que minha filha sare!... Sousa Costa pensa em Deus.

5. Carlos é bem o retrato ou exemplo da nossa sexualidade latina ou brasileira. Com todas as suas minúcias e permissões. Fräulein não compreende bem o amor latino. Para manter a sexualidade de Carlos e a pureza de sua saúde é que Fräulein foi contratada. Carlos precisava de mulher dentro de casa.

6. Tudo passa e muda. A família burguesa, bem composta, bem construída, mantém sua estabilidade. Um família imóvel, mas feliz.

O livro tem uma estrutura incomum: não há capítulos em si, apenas espaços em branco que separam passagens; a palavra FIM aparece após o Idílio, apenas após isso dá-se a conclusão da história.

1 comentários:

Izis Borck disse...

Oi, obrigada pelo seu carinho e pelas palavras.
Beijocas

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